[EUA] Uma Breve História de Ficção Anarquista

Às vezes questiona-se qual forma de governo mais convém a um artista. Há apenas uma resposta para essa pergunta. A forma de governo que mais lhe convém é nenhum governo”  
Oscar Wilde
Eu costumava ver meus interesses em relação ao anarquismo e em relação à ficção enquanto coisas totalmente separadas, porque eu não sabia que de alguma forma as duas coisas coincidiam. Nenhum dos meus amigos ativistas estavam escrevendo histórias – pelo menos nunca me contaram – e eu ainda não havia percebido o quão rica é a história da ficção anarquista. Mas existem anarquistas, teóricos e ativistas, na ficção convencional – no entanto, sua visão política raramente é divulgada para o mundo. Existem escritores entre os ativistas, mas seus escritos raramente são distribuídos. E existe uma notável e ampla história de cultura multilíngüe anarquista ao redor do mundo, apesar de que a maioria destas estão escondidas pela obscuridade ou pelo tempo.
A primeira vez que falei sobre anarquismo e ficção foi na feira do livro de Baltimore alguns anos atrás. No momento em que eu estava prestes a dar início à conversa, eu estava muito nervoso – eu sabia que eu iria falar para uma audiência que tinha pouco entendimento sobre o anarquismo – então resolvi caminhar entre as tendas do festival, tentando descobrir como introduzir o assunto. Foi então que eu vi uma tabuleta pintada à mão: “Os primeiros 100 romances de língua inglesa do século XX”, compilados pela Modern Library (Biblioteca Moderna). Três dos primeiros cinco romances foram escritos por pessoas envolvidas com o anarquismo (James Joyce e Aldous Huxley), sendo que havia, no total, oito romances na lista (por Anthony Burgess, Henry Miller, e Kurt Vonnegut). E isso não inclui os socialistas que estavam nesta mesma lista, como Jack London, nem mesmo os dois romances de George Orwell, que sobreviveu após ter sido ferido por um tiro no pescoço lutando contra os fascistas na Guerra Civil Espanhola.
Quando eu li Huxley na escola, não me ensinaram o que ele quis dizer quando escreveu que o que o mundo precisava era uma descentralização radical de caráter “Kropotkiniano e cooperativo” na introdução da edição de 1946 do Admirável Mundo Novo. (Pelo que eu sei, esta introdução não foi mantida nas edições modernas fornecidas para nós estudantes.)
Sem nem ao menos saber disso, você já leu ficção anarquista. Existem grandes “literatos” como Leon Tolstói (“Os Anarquistas estão certos em tudo… eles apenas se enganam em pensar que a Anarquia pode ser instituída através de uma revolução” [“Na Anarquia”, (On Anarchy) 1900]), Lawrence Ferlinghetti, Henry Miller (“[Um Anarquista] é exatamente o que sou. É o que fui a minha vida inteira”. [Conversações com Henry Miller, 1994]), Dambudzo Marechera (“Se você é um escritor de uma nação específica ou de uma raça específica, então vai se foder”.), Ba Jin, Carolyn Chute, J.M. Coetzee (“O que tem de errado com a política é poder em si”. [Diário de um Ano Ruim, 2007]), Jorge Luis Borges, William Blake, e outros autores populares de ficção como Alan Moore, Ursula K. Le Guin, Michael Moorcock, Robert Shea, Norman Spinrad, B. Traven, Kurt Vonnegut, Ethel Mannin, e Edward Abbey.
Obviamente, minha pesquisa foi necessariamente limitada por barreiras geográficas e lingüísticas, e estas listas portanto são um tanto língua-inglesa e américo-centristas. Mas uma coisa que achei consistente é que, ao redor do mundo, a ficção fez e faz parte do nosso movimento e os anarquistas são e foram parte da história da literatura. Nos anos 1920 e 1930 na Espanha, haviam dois periódicos de ficção anarquista: “La Novela Ideal” e “La Novela Libre”, que imprimiu em torno de 50.000 cópias e incluía alguns dos mais importantes escritores daquelas décadas. Publicações das revistas continuaram durante a Guerra Civil Espanhola e só acabaram quando Franco tomou o controle do país.
Muitos dos autores mais lidos, que todavia não se identificavam explicitamente enquanto anarquistas, tiveram laços muito próximos e simpatia pela nossa causa. William Burroughs escreveu “Cidades da Noite Vermelha”, um romance anarquista homoerótico. Albert Camus escreveu extensivamente para jornais anarquistas e usou sua influência literária para ajudar prisioneiros anarquistas. Franz Kafka participou de encontros anarquistas e manifestações em Praga, além de ajudar a fundar um jornal anarquista. Um dos primeiros romances de Philip K. Dick, foi uma história anarquista, intitulada “O Último dos Mestres”. George Bernard Shaw, dramaturgo e novelista, flertou com o anarquismo muito cedo em sua vida, antes de se fixar enquanto um social-democrata, e ele incluía anarquistas simpáticos em seu trabalho e era publicado por jornais anarquistas. Frank Herbert foi um crítico contundente do governo e da lei e viveu em um projeto de comunidade auto-sustentável. Upton Sinclair escreveu o livro “Boston” para defender os prisioneiros anarquistas Sacco e Vanzetti. JRR Tolkien escreveu para seu filho dizendo “Meu posicionamento político tende cada vez mais para a Anarquia (filosoficamente compreendida, significando a abolição do controle, e não homens barbados com bombas)”.
Historicamente, numerosos ativistas anarquistas e militantes foram autores de ficção: Voltairine DeCleyre, Federica Montseny, Fredy Perlman, Eugene Nelson, Joseph Dejacque, Eduard Pons Prades, William Godwin, Louise Michel, e Antonio Penichet, todos eles e elas escreveram ficção complementando a teoria, ou adicionada à levantes armados contra o fascismo e contra o Estado.
Mas, obviamente, a ficção anarquista não está limitada à pessoas famosas, e a cultura anarquista está envolvida na tentativa de quebrar hierarquias onde quer que elas se encontrem. Eu descobri dezenas de autores DIY (Faça Você Mesmo) anarquistas de La Novela Ideal, na minha pesquisa que deu visibilidade à zines e livros, em pequenos editores, que de uma maneira geral tentaram manter a narrativa viva no anarquismo – porque sempre fez parte do nosso movimento.
Um problema que empesta a ficção anarquista, no entanto, é um problema que empesta muita ficção ativista. Ser capaz de contar uma história convincente mantendo uma crítica sólida e radical são capacidades diferentes, e a melhor ficção é escrita pelas poucas e raras pessoas que desenvolveram ambas as coisas. Como meu amigo coloca, política não é desculpa para arte ruim. Existem muitos romances didáticos que tentam usar a ficção para descrever uma sociedade anarquista, mas que se tornam rasos na escrita ou carecem de nuança e crítica. O meu favorito destes, pessoalmente, é o livro de Graham Purchase, “Minha Jornada Com Aristóteles para a Utopia Anarquista”: a sociedade descrita é fascinante e bem-pensada, mas a prosa é opaca e o enredo e os personagens são superficiais. Por outro lado, existem romances anarquistas escritos por escritores profissionais que descrevem nosso movimento e nossa cultura perdendo pontos importantes da nossa crítica, nos pintando enquanto vilões, ou então falhando na tentativa de retratar-nos com precisão. O livro mais famoso e difamador de anarquista-como-terrorista-louco é provavelmente o livro de Joseph Conrad, “O Agente Secreto”, o que é vergonhoso, visto que o pai de Conrad foi um político polonês radical que teve laços com Bakunin.
Existem pouquíssimos romances anarquistas excepcionais, ou então não são bem distribuídos. De longe, o romance anarquista mais conhecido que passa em ambos os testes, é o livro de Ursula K. Le Guin, “Os Despossuídos”. Outros livros notáveis que retratam sociedades anarquistas são “A Quinta Coisa Sagrada”, de Starhawk, “Mulher na Margem do Tempo”, de Marge Piercy, “Bolo’Bolo”, de P.M., a trilogia de Marte, de Kim Stanley Robinson’s, e “Os Livres”, de M. Gilliand. Os anarquistas conseguiram esta amplitude enquanto personagens simpáticos (embora muitas vezes distorcidos ou idealizados) em diversos livros, como “Geek Mafia – Black Hat Blues”, de Rick Dakan, “Someone Comes to Town, Someone Leaves Town (Alguém vem à cidade, Alguém Deixa a Cidade)”, de Cory Doctorow, “54”, de Wu Ming, “Os Invisíveis”, de Grant Morrison, e “Contra o Dia”, de Thomas Pynchon.
Eu lancei um livro em 2009 com a AK Press intitulado “Mythmakers & Lawbreakers: Anarchist Writers on Fiction” (Criadores de Mitos e Infratores da Lei: Escritores Anarquistas na Ficção): que retrata 14 entrevistas com escritores de ficção anarquista e que é também uma compilação de biografias de cada escritor de ficção anarquista que eu fui capaz de encontrar, vivos e mortos. Após o lançamento do livro, fiz uma turnê pelos Estados Unidos e pela Europa falando sobre anarquismo e ficção, e me questionaram diversas vezes sobre qual o meu romance de ficção anarquista favorito. Em um primeiro momento eu não sabia o que responder, mas eventualmente, acabei optando por “The Watch”, de Dennis Danver. “The Watch”, é sem dúvidas um dos melhores livros de viagem que eu já li, coloca Piotr Kropotkin em Richmond, Virginia, em 1989 e observa como ele lida com anarcopunks, trabalho precarizado, e as relações de raça. O livro conta uma história linda e discreta com personagens convincentes, e ainda introduz o leitor a alguns dos mais básicos conceitos políticos e filosóficos do anarquismo.
E esse é, eu argumentaria, o poder da ficção anarquista. Uma vez atrás da outra, nas entrevistas que gravei, ouvi que a ficção é um método muito bom para questionar ao invés de oferecer modelos, uma maneira de fazer sugestões que não tem como objetivo serem interpretados como um código de leis, uma maneira de explorar os efeitos em potencial do anarquismo nas pessoas. E é claro, a ficção anarquista não é limitada à retratos de sociedades que visualizamos ou à lutas que vivenciamos. O que é útil sobre a ficção anarquista escrita é a habilidade de normalizar nossas visões de mundo: não-hierarquia, anti-autoritarismo, igualitarismo, etc. Podemos normalizar princesas que não só não necessitam serem salvas, como também não tem interesse algum no poder; podemos normalizar histórias contadas pelo ponto de vista da classe trabalhadora, e podemos normalizar as pessoas que normalmente são desconsideradas, transformadas em apenas mais um pela sociedade e pela própria ficção.
Pesquisar as intersecções entre anarquismo e ficção tem sido uma toca de coelho fascinante. Comecei com “Os Despossuídos” e “V de Vingança” de Alan Moore, mas acabei encontrando muito mais, e me parece que cada pedra literária que eu desviro revela ainda mais anarquia. Eu costumava pensar sobre a atual situação como uma paisagem lúgubre e povoada apenas por um punhado de zineiros. Eu estava deprimido: o século XIX teve seus romances utópicos, o início do século XX teve ficção da classe trabalhadora, os anos 60 foi cheio de maravilhosos radicalismos políticos, e os anos 70 deu visibilidade para a ficção científica feminista, e trouxe sua política anti-autoritária e igualitária consigo. Mas, talvez porque estou olhando mais de perto, me parece que estamos passando por um despertar.
A AK Press voltou a publicar novas ficções, e a PM Press, embora não seja exclusivamente de publicações anarquistas, tem publicado ficção anarquista também. O Crimethinc. fez confundirem-se as linhas entre ficção e não-ficção, e também se aventuraram em histórias infantis diretamente. Alguns escritores contemporâneos de ficção anarquista que valem a pena ser pesquisados são: Kristyn Dunnion, Jim Munroe, Fly, Dennis Cooper, Cristy C. Road, The Catastrophone Orchestra, Gabriel Boyer, Rick Dakan, Octavio Buenaventura, Carissa van den Berk Clark, Derrick Jensen, Mattias Elftorp, James Kelman, Gabriel Kuhn, Peter Gelderloos, e Lewis Shiner.
Alguns amigos e eu começamos a trabalhar em um coletivo de publicação de ficção escrita por trabalhadores chamado de “Combustion Books” (Livros de Combustão). Sediados em Nova Iorque, estamos interessados em fazer penetrar idéias radicais na cultura do gênero “ficção” e quebrar os moldes do significado de ser uma editora anarquista..
Nas minhas viagens, tenho me aproximado cada vez mais de pessoas que me contam que tem escrito por anos, livros à mão, zines e urls, e tenho me impressionado com a qualidade de alguns. Nós sempre nos subestimamos, mas nós, enquanto anarquistas, somos plenamente capazes de presentear à este mundo cultura útil, prática, e bem-trabalhada.
por Magpie Killjoy
Fonte: Fifth Estate 385 – Outono de 2011.
Tradução > Malobeo
agência de notícias anarquistas-ana
aquela caverna
triste, fria e sombria
é seu espelho
Marcelo Santos Silvério