[No último dia 5 de junho, após Mumia Abu-Jamal conceder uma entrevista telefônica ao programa radiofônico do advogado Michael Coard chamado “Radio Courtroom” (Tribunal na Rádio), o Departamento de Correções (DOC) estadunidense proibiu as chamadas telefônicas para ele como castigo. E somente em 13 de julho, depois de uma campanha popular de pressão, Mumia voltou a receber ligações e participar do programa de rádio do advogado Michael Coard. E, finalmente, depois de um ano e meio, o DOC aprovou as visitas normais do filho de Mumia, Jamal Hart, que poderá também levar o seu filho e neta de um ano para visitar Mumia. Pois é, Mumia é bisavô! A seguir, a transcrição da entrevista de Mumia que tentaram esconder. Mumia livre já!]
Michael Coard > Hoje é um dia absolutamente histórico. É a estreia do Radio Prison Showapresentado por Mumia Abu-Jamal e co-apresentado por seu advogado Michael Coard, do programa Radio Courtroom em 900AM-WURD. Estaremos em contato com Mumia Abu-Jamal periodicamente. Mumia o pai. Mumia o esposo. Mumia o jornalista. Mumia o autor. Mumia o revolucionário. E Mumia preso temporário. Antes de qualquer coisa, Mumia, como se sente hoje?
Mumia Abu-Jamal < Muito bem. Obrigado por perguntar.
Michael > E te pergunto sinceramente. Falo por parte da comunidade e estamos preocupados por sua situação, seu bem estar. Mas este é seu programa, Mumia. Pode improvisar. Eu nada mais vou fazer que lançar umas poucas perguntas e espero que o leve aonde quiser. Primeiro gostaria que repartisse com os ouvintes o que é o trabalho rotineiro ou a brutalidade cotidiana que ocorre na prisão. Coloquemos os ouvintes em seus sapatos. Conte-nos de um dia seu e de qualquer outra coisa que queira acrescentar.
Mumia < Pois, se eu pudesse modificar um pouquinho a pergunta…
Michael > Sim, por favor.
Mumia < Falaria do dia de uma pessoa típica, porque acredito que de muitas maneiras, minha realidade não é igual. Eu trabalho todos os dias. Leio muito diariamente. Passo muito tempo estudando. Não estou dizendo que não existem outras pessoas que não fazem o mesmo. Sim, existem. Há homens que me superam nisto, mas não acredito que seja um acontecimento raro, notável ou desconhecido que muitas pessoas que não vão bem na escola se graduam no sistema industrial carcerário, ou como dizemos, o complexo industrial carcerário. E aqui estão mal equipados para estudar porque têm dificuldades para ler, escrever, compreender. Muitos homens são analfabetos. Por isso, seu dia consiste em trabalho monótono e pesado. Trabalho árduo. Porque há poucas opções para alguém que deseja obter educação.
Desgraçadamente, como mencionei, estar aqui é uma espécie de graduação. Existem aqueles que leem e estudam se encontram possibilidade, e pela primeira vez em sua vida aprendem coisas fora do ambiente escolar que deveriam ter aprendido muitos anos antes. Mas para a maioria, desgraçadamente, há só oportunidades perdidas devido às ações do senhor que alguns chamamos entre risadas “o primeiro presidente negro” (risos). Falo de William Jefferson Clinton. Fez muitos cortes em bolsas de estudo e outras oportunidades educativas. A lógica do ex-presidente era que estas coisas não estavam disponíveis a pessoas no “mundo livre” e por isso, não deveriam estar disponíveis aos presos. É uma visão invertida do mundo.
Na verdade, estes programas devem estar disponíveis a todas as pessoas nos Estados Unidos. Mas como bem sabe, sendo advogado, não há tal coisa como um direito constitucional a educação. Por isso temos milhões de pessoas que não podem desenvolver-se, não podem aprender. E essa é a experiência de muitos homens neste tipo de situação.
Michael > Mumia, me agrada que tenha modificado minha pergunta, e antes de chegar à segunda, me permita te perguntar sobre o que disse ao modificá-la. Mumia, por que e como é tão desinteressado? Por que pensa sempre na situação de outros e nunca fala das injustiças que fizeram a você pessoalmente?
Mumia < Pois, eu não diria nunca, diria raras vezes (risos). A verdade é que [interrupção]… Falemos desta prisão onde estou, por exemplo. Aqui tem cerca de 2.200 homens. Tem 51.000 no estado da Pensilvânia. Se checasse os 50 estados e Porto Rico, encontraria 2.5 milhões de pessoas, quase a maioria dos quais são pessoas afro-americanas. Por isso, não podemos ignorar o que, e o que seria para qualquer comunidade uma imensa catástrofe.
Michelle Alexander escreveu um aclamado livro intitulado “O Novo Jim Crow¹”, no qual faz algumas observações arrepiantes muito fundamentais. Por exemplo, diz que o número de homens negros na prisão nos Estados Unidos hoje em dia supera o número de pessoas mantidas em regime de escravidão em 1855 justamente antes da Guerra Civil. Também diz que o número atual de homens negros, e mulheres negras também, nas prisões dos Estados Unidos supera o número de encarcerados na África do Sul durante o regime de apartheid em seu apogeu. Lá pessoas negras em todas as partes do país, incluindo líderes, legisladores, acadêmicos e ativistas protestavam contra a feiura do regime de apartheid. Pois nós já ultrapassamos essa feia realidade, mas a camuflamos com um presidente negro, prefeitos negros, diretores e comissários carcerários negros. E o efeito em nossa comunidade é profundo.
Então quando falo de tudo isto é porque não se comenta o suficiente. O faço porque a realidade é óbvia todos os dias. Se mais pessoas falassem disto, eu não teria que dizer uma só palavra, não? (risos)
Michael > Bem dito. Queremos escutar mais sobre isto. Me deixe te fazer outra pergunta: Quanta fé tem, se é que tem, no sistema legal?
Mumia < Bem, acredito que a fé é para amantes ou sacerdotes, digo gente religiosa. Não acredito que a lei seja um lugar para o amor ou a religião. Durante muitos anos tenho dito que não tenho nenhuma fé, nenhuma confiança no sistema. Nenhuma. E o sistema tem mostrado que tenho razão.
É interessante que me pergunte isto agora mesmo. Estou escrevendo um livro junto com o cineasta Steve Vittoria, e por isso estou investigando a Suprema Corte. Tenho lido uns quatro livros sobre o tema dentro das últimas três semanas. E quanto mais leio, menos motivo tenho para ter fé nesta instituição tão apregoada. O que os juízes tem feito é apoiar todo tipo de repressão jamais conhecida pela humanidade.
Michael > Sim, concordo.
Mumia < Ou quando não o fazem, quando criticaram ou expressaram oposição ao injusto, ou o declararam inconstitucional, o que passa no mundo real é muito diferente do que encontramos em suas opiniões.
Michael > Sim, sim.
Mumia < Houve um caso decidido em meados de 1880, onde determinaram que o confinamento em solitária (o isolamento prolongado em uma cela) era inconstitucional, que era um castigo cruel e incomum. Imagina! Seria assombroso obter uma decisão como aquela hoje em dia, quando existe muito mais gente confinada em solitárias por um fator ao redor de 1.000.
Pelo menos 25.000 pessoas vivem em isolamento quase total em todas as partes do país nas prisões de controle em cada estado e no sistema federal. Estamos falando de manter aos homens sós em uma cela, muitas vezes com nada, não durante dias ou meses, mas durante anos e décadas.
Sob a lei internacional, isto normalmente se chama “tortura”, porque somos animais sociais, criaturas sociais a quem nos faz falta a interação social com outras pessoas.
Então ter fé na lei seria uma loucura.
Michael > Bem dito. E me permita seguir com outra pergunta. Se as pessoas razoáveis já não tem fé ou confiança no sistema, que fazemos quando há uma injustiça descarada? Que fazemos a respeito do complexo industrial carcerário? E suponho que a pergunta mais ampla é buscamos reforma ou buscamos revolução? Como se promove uma mudança se não trabalhamos desde dentro, usando o sistema, usando a lei?
Mumia < Pois eu considero de uma maneira um pouco diferente e te direi o porquê. Antes mencionei a Michelle Alexander. E tem um motivo para retomar o que disse. Em seu livro “O Novo Jim Crow”, ela diz que dada a magnitude do complexo industrial carcerário hoje em dia, nada menos que um movimento massivo começará a sacudir esse baluarte de repressão. É o que impactou o sistema original de segregação racial denominado “Jim Crow” e faz falta o mesmo agora. Se as pessoas decidirem… Não diz na Declaração de Independência que as pessoas tem direito de mudar ou abolir seu governo?
Michael > Sim senhor, sim senhor.
Mumia < É algo que as pessoas têm que decidir. E diz respeito aos que chamamos ativistas, ou radicais, ou revolucionários, fazer este chamado. Cabe a eles organizar as pessoas, levantar um movimento [interrupção], um movimento dirigido a esta grande injustiça social de nossos tempos.
Michael > Mumia, falas desta grande injustiça social de nossos tempos. Se tivesse que classificar as grandes injustiças atuais, se sentiria a vontade dizendo, está é mais grave, esta é a segunda? Qual considera a mais flagrante, se é que tem uma mais flagrante? Seria o complexo industrial carcerário? Seria outra coisa? Haverá um monte? Você, o que diria?
Mumia < Para que haja claridade, evitaria falar de um monte, ainda que talvez um monte de injustiças venham a mente. (risos) Para simplificar, e para explicar claramente a necessidade de organizar um movimento, diria que não é uma coincidência que na cidade da Filadélfia estão fechando 27 escolas, principalmente na comunidade negra. Em Chicago, estão fechando 54 escolas. Poderíamos falar do mesmo no Harlem ou em Rochester ou em Detroit – em cidades por todas as partes da nação negra. A educação é a porta, ou me permita reformular isso – a falta de educação é a porta para o complexo industrial carcerário.
E por que acha que estão fechando escolas principalmente na comunidade negra? Porque têm planos para que todos os jovens de toda uma geração migrem para as ruas e logo depois para as prisões onde podem os explorar economicamente. Milhões de dólares que se devem gastar nas comunidades negras da Filadélfia Norte, Filadélfia Oeste e Germantown irão para os povos carcerários de Waynesburg ou até aqui em Mahanoy. Porque o censo conta as pessoas. [interrupção]. Então o dinheiro recolhido dos impostos que se devem gastar em transportes, educação e saúde se gasta nesta parte do estado onde agora há mais gente (encarcerada). E Filadélfia Norte, Filadélfia Oeste e Germantown perdem cada vez mais. A educação e o complexo industrial carcerário estão relacionados. São parte da mesma coisa.
Michael > Mumia, recebemos o aviso de que só temos mais 60 segundos nesta chamada. Não deixe de falar, por favor. Queremos escutar suas sábias palavras. Só quero te perguntar mais uma coisa. Como mantém sua agilidade mental, seu senso de humor? Estou te disparando perguntas e suas respostas são rápidas e às vezes divertidíssimas. Como o faz?
Mumia < Leio muito. Estudo muito. Tornou-se um hábito que não posso deixar. Tem que estar preparado quando uma oportunidade se apresenta, como é o caso agora. Obrigado, meu irmão. Foram grandiosos esses 15 minutos.
Michael > Obrigado a você, Mumia, e vamos seguir com isto. Muitíssimo obrigado por seu tempo. Diria “fique firme”, mas sei que de todo modo já vai o fazer.
[1] Jim Crow. O nome do sistema de segregação racial tomado de um personagem em espetáculos de música e dança que apresentavam estereótipos raciais protagonizados por atores brancos com o rosto maquiado de negro.
A Rádio Prision Show com Mumia Abu-Jamal e Michael Coard é transmitida toda a primeira quarta-feira de cada mês, às 12hs (horário estadunidense) como um segmento da Rádio Courtroom em 900AM-WURD, na Filadélfia.
Assine uma petição para exigir sua libertação imediata:
Escreva uma carta a Mumia:
Mumia Abu-Jamal #AM8335
SCI Mahanoy
301 Morea Road
Frackville, PA 17932
EUA
Infos sobre o caso Mumia, em português:
Tradução > Caróu
agência de notícias anarquistas-ana
Flores azuis
no fundo de águas rasas.
Dama-do-lago.
Gladston Salles